... da totalidade das coisas e dos seres, do total das coisas e dos seres, do que é objeto de todo o discurso, da totalidade das coisas concretas ou abstratas, sem faltar nenhuma, de todos os atributos e qualidades, de todas as pessoas, de todo mundo, do que é importante, do que é essencial, do que realmente conta...
Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 45 - Setembro 2012

Crônica - Roniwalter Jatobá

Trabalhadores 'batendo laje' na periferia de São Paulo
Foto-manipulação de Eduardo Miranda


Dia De Bater Laje

As migrações internas incharam as grandes cidades. Contam que, nos anos 50, mais de 500 mil nordestinos mudavam para São Paulo em busca da terra prometida. Chegavam de trem, pau-de-arara, a pé, à procura da riqueza que o pobre e miserável meio rural não tinha condições de proporcionar. Traziam malas amarelas e duras de couro curtido de boi e, dentro, uma ou duas trocas de roupas impróprias para o frio da cidade garoenta e fria.

Anos antes, em 1938, a literatura de Graciliano Ramos já havia comovido a intelectualidade urbana com a descrição realista e crua de uma família pobre na aridez do Nordeste. Profeticamente, o escritor alagoano contou no final do seu livro Vidas secas: “E andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de homens fortes. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá.”

Chegavam para trabalhar nas construções, em canteiros de obras, na roça carpindo mato, onde encontrassem lugar. Também erguiam prédios; logo aprendiam a lidar com colheres e prumos como um dia se tornaram capazes na arte de fazer rapadura e açúcar. Mas gostavam era do trabalho na fábrica, mesmo insalubre, com carteira assinada e um salário certo no fim do mês.

No começo, viviam dispersos, batendo a cabeça para lá e para cá, mas logo as maiorias foram se arranchando em algum canto. Buscavam os arredores da cidade, seguindo as linhas do trem, lado a lado com indústrias recentes.

Contam também que, tempos depois, alguns voltaram enlouquecidos com a diferença de mundos. No lugar de origem, sem juízo perfeito, corriam pelas ruas, como se quisessem mostrar para todos que o mundo não perdoa os desgarrados. Outros, como para provar que nem tudo está baseado no destino, retornavam bem de vida ou pelo menos mostravam isso na aparência. Em dias de festa, apareciam em férias vestidos de ternos comprados a prestação na José Paulino.

Everaldo José da Silva, morador na travessa da Tranquilidade, perto do Mercado Municipal, em São Miguel Paulista, sempre esteve ligado a toda essa história da migração. Depois de comer o pão que o diabo amassou nas terras das beiradas do Tietê e juntar alguns trocados no bolso, primeiro foi buscar os irmãos mais velhos. Com o passar do tempo, carregou a família inteira para ajudar a construir São Paulo.

Em 2000, depois de 35 anos no batente da Nitroquímica, se aposentou. Novo ainda, poderia, se quisesse, passar o resto dos seus dias levando a vida, longe do burburinho da metrópole. Mas, não.

Nas madrugadas de domingos, era possível encontrá-lo pelas ruas de São Miguel. Sem roupa domingueira, mas de trabalho, caminhava por vias vazias de carros. Na antiga São Paulo-Rio, pegava um ônibus que iria deixá-lo perto da ponte do Jardim Maia, já bem próximo ao bairro do Itaim Paulista. Isso porque, três dias antes, algum amigo havia passado pela sua casa. Precisava de ajuda para erguer um “sobradinho” com três cômodos.

Conforme o combinado, Everaldo atravessava a ponte sobre a estrada de ferro. Longe, a perder de vista, o emaranhado de fios e trilhos. Pensava ele, nada paga a alegria de ver nascer uma nova e digna moradia.

Faz quase um ano que Everaldo faleceu. Falta alguém importante em São Miguel. Quem pode esquecer-se daquele ser prestativo que acreditava que, faça sol ou faça chuva, todo domingo era dia de bater laje?

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